Qual é a sua percepção sobre a participação política do brasileiro?
Penso que a sociedade brasileira está em um momento crítico, porque vive
indignada com a incompetência administrativa, o descaso, a corrupção,
mas em geral se limita ao que eu chamo de retórica da indignação. Fica
indignada, mas incapaz de movimentos que possam mudar o quadro.
Parte da sociedade vive nessa inação porque são muitos os cidadãos que
sonegam impostos, subornam guarda, furam fila, não respeitam a lei. É
preciso mudar isso. E também aprender a organizar-se em grupos para
discutir os assuntos que incomodam, e chamar para ajudar na discussão o
ministério público, a universidade etc. Para a partir daí criar
objetivos concretos e levar ao campo da política – ou tudo vai continuar
como hoje. Seria muito importante também para a universidade, que foi
muito perseguida durante a ditadura militar e se fechou para os
problemas da sociedade.
O problema é complexo e grave. Estava relendo os relatórios do PNUD
(Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) do começo da década
de 1990, e eles dizem uma coisa em que é preciso pensar: no mundo
moderno, o Estado se tornou pequeno demais para enfrentar os grandes
problemas do mundo, e ao mesmo tempo grande demais, incapaz de se
aproximar dos problemas do cidadão comum. O Estado ficou imobilizado
pelos dois lados, e a sociedade precisa aprender a romper com isso. É
preciso ter macropolíticas capazes de responder aos grandes problemas da
sociedade, mas também uma descentralização que leve o poder a se
aproximar do cotidiano do cidadão.
Principalmente nesse mundo de hoje, em que a metrópole está se tornando
um padrão. São Paulo, por exemplo, é um padrão de metrópole que foi se
estendendo pelo interior, ao longo do eixo que passa por Jundiaí,
Campinas, Ribeirão Preto, Uberaba, Uberlândia, até o Centro-Oeste, em
Goiânia. E mesmo em lugares mais distantes, como Manaus, Belém e Boa
Vista, vai-se encontrar essa mesma coisa. Em uma daquelas grandes
avenidas de Manaus não vai se ver floresta, característica da Amazônia –
só se veem prédios, só torres. Em Belém, a mesma coisa. Em Porto Velho o
trânsito é um inferno. É preciso repensar isso, não manter esse modelo
de transportes. Ou vamos continuar despejando centenas de milhares de
carros por mês em lugares onde já não há mais como se mover? Centenas de
milhares de motocicletas?
Quais os temas capazes de mobilizar a sociedade brasileira hoje, a seu ver?
A questão do transporte, certamente, é um deles. A segurança pública é
outro tema. Penso também que o financiamento de campanhas, se houver uma
discussão bem conduzida, pode ser muito eficaz. Porque hoje a
influência de quem financia as campanhas se tornou muito grande. Os
financiamentos vêm principalmente das grandes construtoras, das grandes
empresas de coleta de lixo. E isso acaba determinando rumos para a
política. É preciso que se discuta: não seria o caso de caminharmos para
o financiamento público das campanhas? Os críticos desse modelo dizem
que o financiamento pode ser público e, por trás do pano, continuar
tendo financiamento privado. Não sei, é preciso discutir isso. Será que o
caminho é o modelo do representante distrital, para aproximar a
discussão das comunidades? O financiamento das campanhas precisa ser
discutido porque, do jeito que está, eu às vezes penso, ironicamente,
que talvez o modelo mais democrático tenha sido o da ditadura militar,
em que só se podia botar na televisão o retrato 3×4 e três linhas de
biografia. Aí se igualavam as possibilidades.
Acho também que, nessa questão das macropolíticas, é preciso discutir
como é que se vai fazer, porque tudo o que o ser humano faz tem um
impacto sobre o meio físico. No grande meio urbano esses impactos são
grandes, e não são compensados por quem os provoca. Por exemplo, o
sujeito faz cinco torres de 40 pavimentos, e isso vai provocar um
impacto enorme no trânsito, nas necessidades de água e esgoto, no lixo e
na energia. E quem é que paga por isso? Vivem abrindo exceções para
deixar construir além do gabarito, de modo a não cobrar os impactos.
Isso precisa mudar, a sociedade precisa discutir isso.
Trata-se de repensar nosso modo de vida em vários aspectos, não é?
Cada cidadão precisa pensar nos impactos que produz e em como
reduzi-los. Isso vai implicar mudanças nos modelos de construção, nos
modelos de energia. Porque, da forma que está, estamos caminhando para
impasses gigantescos. Esses dias saiu uma notícia assim: em 97, quando
foi aprovado o protocolo de Kyoto, se estabeleceu que os países
industrializados reduziriam as suas emissões de gases poluentes em 5,10%
até 2012. O balanço diz que essas emissões aumentaram 45%, e não
diminuíram 5,2%. Os relatórios do programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente mostram que estamos consumindo recursos mais de 30% além da
capacidade de reposição do planeta. Isso é insustentável.
Tudo continua sendo regido pelas lógicas financeiras – sejam os países,
sejam as empresas, até as próprias pessoas. Mas estamos caminhando para
problemas graves. Primeiro, porque a situação do mundo está muito
difícil. Já temos um bilhão de pessoas passando fome, e a chamada crise
da água ameaça dois terços da humanidade. O Kofi Annan, que foi
secretário-geral da ONU durante uma década – um homem experiente,
informado – tem repetido e repetido o seguinte: hoje, os problemas
centrais do nosso tempo não estão no terrorismo, mas nas mudanças
climáticas e no consumo de recursos além da capacidade de reposição do
planeta – Eles são uma ameaça à sobrevivência da espécie humana. Ainda
mais lembrando que tudo isso vai ser agravado, porque a previsão dos
demógrafos da ONU é de mais três bilhões de pessoas no mundo. Agora em
novembro [de 2011] chegamos a sete, não é?
E há um ângulo que praticamente não se discute, que é o direito da
sociedade à informação. Não estou falando em censura, ausência de
liberdade de pensamento – não é isso. Estou falando o seguinte: hoje se
sabe que quem tem mais informação tem mais poder. Mas não há nenhuma
legislação que diga a quem pertence essa informação – porque, para ser
democrática, ela tem que pertencer à sociedade. Se quem tem mais
informação tem mais poder, a informação tem que ser democrática para que
o mundo seja democrático, não é? Mas não há legislação que proteja
isso.
Uma forma de regulação da mídia?
A meu ver, seria preciso escrever na Constituição que a informação é um
direito, um bem da sociedade. É preciso legislar para regulamentar e
proteger este direito. Não há nada, hoje, que diga aos meios de
comunicação como devem proceder. Quer dizer, o meio de comunicação
publica ou bota no ar o que ele quer. O critério é dele. Nisso aí está
implícito o direito de omitir informação. É preciso reconhecer que há um
direito da sociedade à informação, definir como isso vai ser colocado
na Constituição e qual é a legislação que vai proteger esse direito.
Isso me faz lembrar as sociedades indígenas, nas quais a informação
circula livremente. Haverá outras lições para nós, nessas sociedades?
A nossa visão de brancos, vamos chamar assim, sobre as sociedades
indígenas, é muito peculiar, porque olha o índio não pelo que ele tem,
mas pelo que ele não tem. Vê que o índio anda nu, que não tem isso, não
tem aquilo. E não enxerga que as sociedades indígenas talvez estejam
apontando em direção à utopia humana.
Uma delas é que, no seu formato tradicional, não há nas sociedades
indígenas delegação de poder. O chefe não tem poder para dar ordem. Numa
sociedade que se mantém viva, se um índio der ordem para outro, o outro
vai achar aquilo engraçado, alguém dar ordem para ele. O chefe é o que
mais sabe da cultura, o que mais sabe da divisão do trabalho, é o grande
mediador de conflitos, tem de falar melhor. É o que mais sofre, também.
Mas não dá ordem a ninguém. Nós, brancos, não enxergamos que luxo é
viver, nascer e morrer numa sociedade sem nunca receber ordem de
ninguém.
Da mesma forma, também nos esquecemos de que, quando uma sociedade
indígena está na força da sua cultura, um índio é autossuficiente, não
depende de ninguém para nada. Ele sabe fazer sua casa, sabe fazer sua
lavoura, sabe fazer sua canoa, sabe fazer seus instrumentos de trabalho,
a sua rede, os seus objetos de adorno, sabe identificar na natureza
espécies que sejam úteis. Quer dizer, ele não recebe ordem de ninguém e
não depende de ninguém para nada, a vida inteira.
E a informação é aberta – o que um sabe, todos podem saber. Ninguém se
apropria da informação para transformá-la em poder político ou
econômico. Além de aquelas sociedades darem muita atenção ao seu
entorno: nos lugares que conheço, quando uma aldeia chega a 300, 400
pessoas, ela costuma se dividir, exatamente para que não haja uma
sobrecarga dos recursos ambientais dos quais a aldeia depende. Isso
também é de uma enorme sabedoria, não construir megaconcentrações
humanas.
E quanto ao relacionamento entre os gêneros?
Sobre a relação entre homem e mulher, eu sempre cito um aspecto para o
qual o Orlando Villas Boas me chamou a atenção: em geral são sociedades
em que a união entre homem e mulher é absolutamente livre. Casa e
descasa quando quer, ninguém tem nada a dizer, não há nenhuma sanção
social. Digamos que o homem não esteja satisfeito com a mulher, porque
ela não está trazendo água limpa para casa, e isso é uma tarefa da
mulher. Se ele quiser, pode simplesmente dizer “não tenho água, vou-me
embora” – e ir embora. Mas, se ele quiser continuar com a mulher, não
vai sequer dizer a ela que não está satisfeito, porque isso pressupõe
que ele tem direito a que ela traga água para casa e pode reclamar se
ela não trouxer – e ele não tem esse direito, ela traz se quiser. Está
nas divisões de trabalho: é uma tarefa da mulher trazer água limpa para
casa. Mas, se ela não quiser, não traz – e o homem não pode se queixar.
O que ele pode fazer é procurar o chefe, os mais velhos, e dizer: “olha,
minha mulher não está trazendo água limpa para casa”, e eles
provavelmente vão reunir os homens e as mulheres e explicar como é a
divisão de trabalho na etnia deles, porque tais tarefas cabem aos homens
e tais tarefas cabem às mulheres, e entre essas tarefas está trazer a
água limpa para casa. Se a mulher quiser botar a carapuça, ela bota; se
não quiser, também não bota. Mas não há sequer o direito de queixa.
É muito sofisticado, isso. São utopias em direção às quais a nossa
sociedade precisa olhar, principalmente na crise em que estamos
mergulhados. Temos que mudar os nossos modos de viver, eles são
insustentáveis, incompatíveis com as possibilidades do planeta. Temos
que encontrar outros caminhos.
A liberdade sempre foi uma bandeira de luta. Ainda é, hoje?
A gente falou das sociedades indígenas onde isso, digamos assim, chega
ao extremo possível. No extremo possível da liberdade. Já os nossos
modos de viver restringem cada vez mais a nossa liberdade. Estamos
dependentes de uma porção de coisas fora de nós. Precisamos repensar
nossos modos de viver para ter vidas mais autônomas, mais livres, mais
seguras.
Sou de uma pequena cidade do interior de São Paulo, Vargem Grande do
Sul. Com cinco ou seis anos de idade, eu andava sozinho pela cidade
inteira e isso não implicava nenhum risco. Era uma cidade pequena, não
tinha trânsito, todas as pessoas me conheciam. Meu pai era professor
primário e minha mãe, costureira. E no entanto tínhamos um nível de vida
que, para que eu pudesse proporcionar isso hoje, para meus filhos e
netos, precisaria ser muito rico. Por exemplo, alimentação: um
verdureiro trazia verduras na porta de casa, orgânicas, da mais alta
qualidade; um leiteiro trazia o leite; e o pão era comprado ali na
esquina. Ninguém tinha geladeira, então se comprava de manhã a carne
abatida na madrugada e depois outra, abatida na parte da tarde, para ter
sempre carne fresca. Era um alto nível de sofisticação alimentar. Nossa
vida foi ficando cada vez mais complexa e difícil.
Considerando que não é possível voltar ao passado, como você enxerga as novas gerações vivendo nesse planeta?
Penso que as novas gerações estão muito envolvidas nesta sociedade
complexa e tecnológica porque nunca conheceram outras possibilidades. O
jovem hoje passa metade do dia na frente de uma tela de computador, até
porque não tem outra possibilidade. Outra possibilidade implicaria o
quê? Insegurança, sair de casa, riscos com o trânsito, com assaltos,
perder tempo no transporte. Então, ele fica preso nisso.
Você pensa que a tecnologia, as redes sociais têm um papel nos processos de mobilização política?
A tecnologia tem muitos papeis e muitos caminhos, bons e ruins. A
tecnologia implica um consumo de recursos naturais e de energia elétrica
muito grande, implica caminhos que também precisam ser revistos. Exige
um uso de minérios que está em crise, inclusive o de minérios mais
raros, que têm grande aplicação na área tecnológica, computadores,
celulares – há um impacto sobre isso, também.
Pensando no que falou até aqui, você imagina novas formas de fazer política?
A mesma coisa que a sociedade precisa fazer, tem que fazer também quem
quer fazer política: chamar a sociedade para discutir. Ouvir a
sociedade, ouvir as pessoas, ouvir o conhecimento, ser capaz de formular
projetos e, depois, batalhar por eles. Não pode, repito, continuar
nesta mera retórica da indignação.
Você imagina uma governança global no futuro?
Não sei se haverá uma governança global. Penso que, se a humanidade
conseguir encontrar um rumo para sair deste imenso atoleiro no qual está
mergulhada, vai ter que definir regras para todos os países. Porque
veja, por exemplo, o impasse em que está a Convenção do Clima: os países
emergentes e os países pobres dizem: quem tem de reduzir as emissões
são os países industrializados, que emitem há muito mais tempo e em
maior quantidade. Aí os países industrializados dizem: mas se os
emergentes e os outros não aderirem não vai adiantar, porque hoje os
emergentes e os pobres juntos já emitem mais do que os
industrializados.
Como é que vamos continuar dessa forma, em que os países
industrializados, com menos de 20% da população, consomem 80% dos
recursos e têm quase 80% da renda do mundo? Como vamos fazer com isso
aí? Vai continuar? Um habitante de um país industrializado consome 15
vezes mais energia que um habitante de um país pobre. Então, sobre
regras de governança: não se trata de ter um governo mundial, mas de ter
princípios universais.
Fonte: Inês Castilho, editora da série Outra Política.